segunda-feira, 14 de junho de 2010

O conto usado na íntegra está abaixo.

"O.HENRY


(1862-1910 Estados Unidos)



Um guarda veio até a sapataria da prisão, onde Jimmy Valentine, como sempre assíduo ao trabalho, costurava sapatos, e o escoltou até a administração. Ali, o diretor entregou-lhe o indulto que o governador assinara naquela manha. Ele cumprira quase dez meses de uma sentença de quatro anos. Não pensara em ficar ali mais três meses. Quando um homem, que tem do lado de fora tantos amigos como Jimmy Valentine, “entra em cana”, quase não cale a pena cortar-lhe os cabelos.

- Bem, Valentine – disse o diretor -, você vai sair amanha. Tome jeito e faça alguma coisa da sua vida. No fundo, você não é uma má pessoa. Pare de arrombar cofres e viva dentro da lei.

- Eu? – disse Jimmy surpreso. – Mas nunca arrombei um cofre em toda a minha vida

- Ah, não! – o diretor riu. – Claro que não. Mas deixe ver, como é mesmo que você foi condenado por aquele trabalho em Springfield? Foi por que não conseguiu provar um álibi para não comprometer uma amiga da mais alta sociedade? Ou foi só o caso de um júri preconceituoso que não foi com a sua cara? É sempre uma coisa ou outra que acontece com vocês “inocentes”.

- Eu, diretor? – disse Jimmy, no seu candor exemplar. – Como? Se nunca estive em Springfield?

- Escolte-o de volta, Cronin – sorriu o diretor -, e arranje roupas de rua para ele. Pode abrir a sua cela ás sete da manhã e leve-o até o registro. Pense bem no meu conselho, Valentine.

Ás sete e um quarto da manhã seguinte, Jimmy estava de volta ao escritório do diretor. Vestia um terno malfeito, roupas prontas e uns sapatos que rangiam, fornecidos pelo Estado a seus hóspedes compulsórios na hora da dispensa.

Um funcionário entregou a ele um bilhete de trem e uma nota de cinco dólares, com o que a sociedade esperava que ele se reabilitasse, tornando-se um cidadão próspero e honesto. O diretor lhe deu um charuto e apertou sua mão. No livro de saídas foi anotado: “Valentine, 9762- Indultado pelo governador.” E Jimmy Valentine saiu para o sol.

Sem dar atenção aos pássaros que cantavam, ás árvores verdes balançando seus ramos ao vento, nem ao perfume das flores, Jimmy foi direto para um restaurante. Ali provou a primeira das doces alegrias da liberdade na forma de uma galinha ensopada e uma garrafa de vinho branco, seguida por um charuto, um pouco melhor do que aquele que lhe dera o diretor. Dali andou com calma até a estação. Jogou uma moeda no chapéu de um cego que estava na porta e tomou seu trem. Três horas de viagem o levaram a uma cidadezinha perto dos limites do estado. Foi ao café de um certo Mike Dolan e apertou a mão de Mike, que estava sozinho atrás de um balcão.

- Desculpe se não pôde ser antes, Jimmy, meu garoto – Disse Mike – Mas tivemos o contratempo daquele protesto de Springfield, e o governador quase volta atrás. Tudo bem?

- Tudo – Disse Jimmy. – Você está com minha chave?

Pegou a chave e subiu para o andar de cima, onde abriu a porta do quarto dos fundos. Tudo permanecia como deixara. No chão ainda estava um botão de Bem Price, que fora arrancado do colarinho do eminente detetive, quando subjugaram Jimmy para prendê-lo. Puxando uma cama de armar, Jimmy fez escorregar um painel da parede e tirou dali uma mala coberta de poeira. Abriu-a e contemplou com amor o mais perfeito jogo de ferramentas de arrombador de todo o leste. Um jogo completo, feito de um aço especialmente temperado, o que havia de mais moderno em brocas, gazuas, tenazes, braçadeiras, pés-de-cabra e puas, mais duas ou três novidades inventadas pelo próprio Jimmy, e que eram o seu orgulho. Gastara mais de novecentos dólares para mandar fazê-las em... Bem, onde fazem estas coisas para a profissão.

Meia hora mais tarde, Jimmy desceu e passou pelo café. Vestia agora roupas elegantes e bem cortadas e levava na mão sua mala limpa e sem poeira.

- Alguma coisa em mira? – Perguntou Mike Dolan, bem humorado.

- Eu? – perguntou Jimmy com espanto. Não estou entendendo. Sou o representante comercial das “Indústrias Reunidas de Fechaduras & Dobradiças S.A.”, de Nova York.

A declaração deliciou de tal modo a Mike, que Jimmy foi obrigado a tomar um milk-shake com ele. Nunca bebia “destilados”.

Uma semana depois que “Valentine, 9762” fora posto em liberdade, arrombaram um cofre, com elegância e maestria, em Richmond, Indiana, sem nenhuma pista que indicasse o autor do trabalho. Míseros oitocentos dólares foi tudo o que levaram. Duas semanas depois disso, em Logansport, um cofre com um patenteado e avançado sistema antifurto fora aberto como se fosse um queijo, ao som de mil e quinhentos dólares em espécie; títulos e metais não foram tocados. Aquilo começou a despertar o interesse dos “pega-ladrões”. Então, foi a vez de um velho cofre de banco, em Jefferson City, entrar em atividade e lançar pela cratera uma erupção de papel moeda no valor de cinco mil dólares.

As perdas agora eram grandes o bastante para levar o problema a um profissional do nível de Ben Price. Comparando dados, encontrou-se uma extraordinária semelhança nos métodos. Ben Price investigou os locais e foi ouvido dizendo:

- Têm a assinatura de “Dandy” Jimmy Valentine. Ela já voltou ao trabalho. Olhem para este cilindro de combinações, arrancando como se fosse um rabanete em terra fofa. Só ele tem ferramentas capazes de fazer isto. E vejam com que limpeza o trabalho foi feito. Jimmy nunca precisa de mais de um furo. Sim, acho que quero ter uma conversa com o Mr.Valentine. Da próxima vez, ele completara sua sentença, sem nenhuma historia de indulto, nem liberdade condicional.

Bem Price conhecia os hábitos de Jimmy. Estudara-os quando trabalhara no caso de Springfield: distância entre os trabalhos, rapidez na fuga, nenhum cúmplice e um fraco pela boa sociedade – hábitos que o fizeram escapar com sucesso da retribuição devida. Espalhou-se que Bem Price estava no rastro do arrombador, e outros proprietários de cofres sentiram-se mais tranqüilos.

Uma tarde, Jimmy Valentine e sua mala desceram da conexão postal, em Elmore, uma cidadezinha a oito quilômetros da estrada de ferro, no interior de Arkansas. Jimmy, parecendo um atlético universitário do último ano de volta ao lar, caminhou pela calçada até o hotel.

Uma jovem atravessou a rua e passou por ele na esquina, entrando por uma porta sobre a qual estava escrito “Banco de Elmore”. Jimmy olhou em seus olhos, esqueceu quem era, e transformou-se em outro homem. Ela baixou os olhos e corou de leve. Jovens com a aparência e o estilo de Jimmy eram escassos em Elmore.

Jimmy encontrou um menino bem á vontade nos degraus do banco, como se fosse um dos acionistas, e começou a indagar sobre a cidade, alimentando a conversa com algumas moedas de dez centavos. Daí a pouco, a garota saiu do banco, ignorando com um ar de superioridade o rapaz com a mala, e seguiu seu caminho.

- Aquela moça não é a Srta. Polly Simson? - perguntou Jimmy, manipulando a resposta.

- Não! – disse o menino. – É Annabel Adams, o pai dela é o dono do banco. Que é que você veio fazer em Elmore? A corrente do seu relógio é de ouro? Quero comprar um buldogue. Vai me dar mais uma moeda?

Jimmy foi para o Hotel Planters e alugou um quarto como Ralph D.Spencer. Encostado no balcão da portaria, deu ao atendente alguns dados biográficos. Disse que estava em Elmore procurando um local para estabelecer um negócio. Quantas sapatarias havia na cidade? Pensava em abrir uma sapataria. Será que havia espaço para mais uma?

O rapaz estava impressionado com as roupas e com os modos de Jimmy. Considerava-se, ele mesmo, um modelo de elegância para a juventude local, mas agora, vendo Jimmy, percebia as próprias limitações. Enquanto tentava se instruir na forma em que Jimmy administrava suas cartas, concedia cordialmente as informações.

Sim, havia muito espaço no negócio de sapatos. Na verdade, não havia uma sapataria na cidade, o armazém local vendia alguns calçados. Esperava que o Sr.Spencer decidisse se estabelecer em Elmore. O comercio, em qualquer ramo, era bom, as pessoas em Elmore eram sociáveis, e a cidade, agradável de se viver.

O Sr.Spencer pensava em passar alguns dias ali e estudar a situação. Não, não era necessário chamar o menino, levara ele mesmo a mala até seu quarto, era muito pesada.

Ralph Spencer – fênix surgido das cinzas de Jimmy Valentine, cinzas resultantes de um súbito ataque de paixão – se fixou em Elmore. Abriu sua sapataria, conseguiu uma boa clientela, e prosperou.

Socialmente era também um sucesso. Fez vários amigos e realizou o que desejava seu coração. Conheceu Annabel Adams, cativado cada vez mais por seu charme.

Depois de um ano, a situação do Sr. Ralph Spencer era a seguinte: Conseguira o respeito de toda a comunidade, sua sapataria florescia, e ele e Annabel estavam noivos e se casariam em duas semanas. Adams, o típico banqueiro do interior, trabalhador e desconfiado, aprovara o casamento. O orgulho que inspirava em Annabel era quase tão grande quanto o amor que a moça sentia por ele. Era já como um membro da família, tanto na casa do Sr.Adams, quanto na casa da irmã casada de Annabel.

Um dia Jimmy sentou-se para escrever esta carta, que enviou ao endereço de confiança de um de seus velhos amigos em St. Louis:



Meu velho,



Queria encontrá-lo no local do Sullivan, em Little Rock, na próxima quarta-feira, ás nove horas da noite. Preciso que você resolva algumas pequenas coisas para mim, e também quero dar-lhe de presente meu jogo de ferramentas. Sei que você as apreciará – não poderia fazer outras iguais nem com mil dólares. Billy, eu me aposentei do velho negocio, há um ano. Tenho uma boa loja, uma vida honesta, e vou me casar daqui a duas semanas com a melhor garota do mundo. Esta é a única vida, Billy – a vida Honesta. Não tocaria no dinheiro de outra pessoa agora, nem por um milhão de dólares. Depois do casamento, penso em vender meu negocio e ir para o Oeste, onde serão menores de ver meu passado se levantar contra mim. Billy, ela acredita em mim e não a decepcionaria por nada no mundo. Não deixe de estar no Sully, quarta-feira, porque preciso vê-lo. Levarei as ferramentas.



Seu velho amigo,

Jimmy



Na segunda-feira á noite, depois que Jimmy escrevera esta carta, Bem Price entrou sem chamar atenção em Elmore num carro alugado. Girou pela cidade e, na sua maneira discreta, descobriu o que queria saber. Da drogaria, em frente á Sapataria Spencer, Price pôde ver bem o rosto de Ralph D.Spencer.

- Vai se casar com a filha do banqueiro, não é mesmo, Jimmy? – disse Price a si mesmo. - Não sei não.

Na manhã seguinte, Jimmy tomou o café da manha na casa dos Adams. Ia a Little Rock, naquela manhã, para encomendar seu terno de casamento e comprar um presente para Annabel. Seria a primeira vez que deixara a cidade desde que viera para Elmore. Um ano já se passara desde seu ultimo “trabalho”, e achava que já podia se aventurar no mundo lá fora.

Depois do café, foram para o centro juntos, num grande grupo familiar – o Sr.Adams, Annabel, Jimmy e a irmã casada de Annabel com suas duas filhas pequenas, de cinco e nove anos. Foram até o hotel, onde Jimmy ainda vivia, e ele subiu a seu quarto para pegar sua mala. Depois foram para o banco. Lá estava a charrete com o cavalo de Jimmy e Dolph Gibson, que ia levá-lo até a estação de trem.

Entraram todos na sala do banco, de teto alto e sustentado por vidas de carvalho – Jimmy inclusive, o futuro genro de Adams era bem-vindo em toda parte. Os funcionários se mostraram felizes em ver e cumprimentar o elegante e simpático jovem que ia se casar com a senhorita Annabel. Jimmy pousou sua mala no chão, e Annabel, transbordante de felicidade e alegria, brincando, colocou na cabeça o chapéu do noivo e pegou sua mala.

- Não fico bem de vendedor? – disse Annabel. – Meu deus, Ralph, como isto pesa! Parece cheia de barras de ouro.

- Uma quantidade de ferros para sola, que vieram por engano – disse Jimmy com presença de espírito. – Vou devolvê-los, e levando comigo não gasto com o frete. Estou ficando econômico.

O Banco de Elmore havia colocado um cofre novo, e o Sr.Adams, que estava muito orgulhoso, quis mostrá-lo a todos. Não era grande, mas era a ultima palavra em segurança, com uma porta que se fechava com três trancas, acionadas simultaneamente por uma única maçaneta, e funcionava com um mecanismo de tempo. O Sr. Adams explicou seu funcionamento ao Sr.Spencer, que, embora não parecesse entender muito bem da coisa, mostrava um gentil interesse. As duas meninas, May e Agatha, estavam encantadas com o metal polido, o relógio e os mecanismos engraçados.

Enquanto estavam nisto, Bem Price, que entrara no banco pouco depois deles, apoiara os cotovelos no balcão, e olhava a cena por entre as barras. Dissera ao caixa que não desejava nada, estava apenas esperando por um conhecido.

De repente as mulheres gritaram. Sem que os adultos percebessem, May, a menina de nove anos, de brincadeira, trancara Agatha no cofre. Depois disso, fechara a maçaneta e girara o cilindro de combinações, como vira seu avô fazer.

O velho banqueiro correu para a maçaneta e tentou mexê-la.

- A porta não pode ser aberta – gemeu. – O relógio ainda não foi ajustado, nem a combinação foi registrada.

A mãe de Agatha começou a gritar de novo, histérica.

- Quietos! – disse o Sr. Adams, levantando a mão tremula. – Fiquem todos quietos. Agatha!- gritou o mais alto que pôde. – Ouça o vovô – durante o silencio que se seguiu, ouviram a menina se debatendo em pânico no escuro interior do cofre.

- Minha querida!- gritou a mãe. – Ela vai morrer de medo. Abram esta porta! Vocês homens não podem fazer nada?

- A pessoa capaz de abri-lo, mais próxima daqui, está em Little Rock – disse o Sr. Adams em voz trêmula. – Meu deus, Spencer, que é que nós vamos fazer? A menina não pode esperar muito tempo, não existe ar suficiente lá dentro; além do mais, terá convulsões de medo.

A mãe de Agatha, desesperada, começou a esmurrar a porta: alguém sem pensar sugeriu dinamite. Annabel olhou para Jimmy com seus olhos grandes e cheios de angustia, mas aonde ainda não havia desespero. Uma mulher sempre acha que nada é impossível para o homem que adora.

- Você não pode fazer alguma coisa, Ralph? Por favor, tente.

Ele a olhou com um estranho sorriso nos lábios, um sorriso suave que estava também em seus olhos.

- Annabel, dê para mim a rosa que está usando.

Mal acreditando no que ouvira, Annabel soltou do alfinete o botão que levava no peito do vestido. Jimmy colocou a flor no bolso do colete, tirou o paletó e arregaçou as mangas. Naquele momento, morria Ralph D. Spencer, e Jimmy Valentine tomava seu lugar.

- Afastem-se da porta, todos vocês – ordenou curto.

Colocou sua mala na mesa e a abriu. Daquele momento em diante, parecia inconsciente da presença de qualquer outra pessoa. Alinhou com rapidez e ordem seus instrumentos, estranhos e brilhantes, enquanto assoviava para si mesmo como fazia sempre que trabalhava. Num profundo silencio, os outros o observavam como enfeitiçados.

Em um minuto, sua broca comia o metal da porta. Em dez minutos – quebrando seu próprio recorde -, a porta estava aberta.

Agatha, quase desmaiando, mas salva, foi recolhida pelos braços da mãe.

Jimmy Valentine vestiu seu paletó e caminhou para a porta. Enquanto ia embora, pensou ouvir de longe uma voz que um dia conhecera chamar “Ralph!”. Mas não hesitou.

Na porta, um homem grande apareceu em seu caminho.

- Olá, Bem! – disse Jimmy, ainda com seu estranho sorriso. – Finalmente me encontrou. Vamos embora, não acho que faça mais nenhuma diferença agora.

Mas aí, Bem Price teve uma atitude muito inesperada.

- Desculpe, mas acho que esta enganado, senhor Spencer – disse ele.- Não creio que já nos conheçamos. Aquele parece que é seu carro que este lhe esperando.

E Bem Price deu-lhe as costas e caminhou devagar pela rua."

Nenhum comentário:

Postar um comentário